sexta-feira, 29 de abril de 2011

Procurar



A rapariguinha chamava-se Marisa. Tinha uns grandes olhos castanhos, e pelo menos uma vez por mês, trazia a expressividade do seu olhar até junto da minha porta. Bastava a maneira como batia, plena de suavidade, com receio que a porta se desfizesse perante o seu toque, que eu já adivinhava quem seria.
Marisa carregava a gata felpuda nos braços e pedia-me que tomasse conta dela. Desta vez são só três dias. Pode ser, Sr. Tomás? Deixo-lhe aqui a comida. Espero que a ‘Viagem’ não lhe dê muito trabalho.
Os recados eram sempre os mesmos, os quais nunca tive coragem de recusar. O olhar da rapariguinha lembrava-me o da minha companheira que tinha partido, mas essa, para uma viagem eterna.
Pouco tempo depois da gata se instalar nos aposentos temporários, ouvia a família partir entre o bulício dos sacos, deixando para trás uma mensagem implícita para a vizinhança: Sabemos que se perdem entre cogitações sobre o destino que tomamos. Não nos levem a mal, mas sobre isso não poderemos falar.
Era uma famíla aparentemente vulgar que mantinha um bom relacionamento connosco, no entanto as conversas mudavam sempre de rumo, assim que alguém se atrevia a inquirir sobre as viagens. Todos queriam saber das razões e dos locais para onde iam. A mim, isso não me despertava tanta curiosidade. Talvez por isso, me pedissem habitualmente para ficar com a gata deles.
Eu também não deixava de fazer as minhas viagens, mas fazia-as sem sair de casa. Já era velho, e sem a minha companheira, não via qualquer interesse em deslocar-me. As minhas paredes estavam forradas de livros, jornais e revistas. Podia levantar voo para qualquer lugar paradisíaco do mundo, assim que me chegassem à retina as linhas de uma nova poesia, ou uma poesia mais velha do que eu, mas à qual atribuía diferentes leituras que me indicavam outras direcções. Tudo isto me enchia de possibilidades, para logo a seguir, cair novamente no vazio e na tentativa de encontrar o endereço exacto da minha companheira.
Ainda nenhuma página me tinha dado essa resposta, por isso passava muito do meu tempo a perseguir essa demanda. Sabia que tinha uma alternativa, mas de que me adiantaria dar um tiro na cabeça, se a minha alma corria o risco de ficar a pairar em qualquer sítio que não fosse junto dela? Assim, todos os dias procurava esse maldito segredo do endereço das almas e sempre sem sucesso. Nenhum verso me dava pistas sobre a localização dessa alma, dessa que precisava para poder partir em paz.
Um dia, nas minhas pesquisas, pelos recantos da vida, deparei com uma fotografia de uma jóia. Foi com espanto que descobri algo que me surpreendeu. A pedra incrustrada na coleira da ‘Viagem’ era igual a uma que tinha sido furtada de uma ourivesaria em Londres e que possuía um valor exorbitante. Peguei na gata e naquele instante decidi fazer uma viagem.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Náufrago (exercício II)



Engoli de um trago as ruas de água
Mastiguei as casas
aperteiamágoa

Fui sorriso por um segundo
m-u-r-i-b-u-n-d-o
Apartei as sombras
Renasci no mundo

Parti dos teus braços
onde o sangue não se abria
Entrei na embarcação
Cheirei o medo e a cobardia

Estendi palavras de coragem
Naufraguei toda a cidade
Apartei os ventos secretos
Engoli de um trago a s-a-u-d-a-d-e

Fui tão longe e voltei
Desapertei a mágoa
por este povo de água que não se alimenta de mim
...não me engole
...não me reconhece
...não me merece
Não é mais noite nem dia
É mais medo e cobardia

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Cinderela Adormecida




Todas as manhãs são cinzentas
Todas as manhãs te inventas em frente ao espelho
Disfarças todos os anos que ficam para trás
com os pós de magia que ainda te restam.

És bela, Cinderela.
O teu sorriso é cinzento
Cheiras a sonasol
E trazes o sol nos sapatos altos.

Tropeças nas manhãs
E cais nas tardes sem cor
com sabor a comprimidos
Nenhuma tarde tem cor
e todos os passos dados são vigiados

És bela Cinderela.
O teu sorriso é amarelo
Cheiras a caramelo
E trazes o mar nos sapatos altos

Entras na noite a implorar que te resgatem
Todas as noites são verdes
como os teus olhos castanhos.
Já não distingues as cores no meio de tanta panela.

És bela, Cinderela.
Choras por trás do teu sorriso
Cheiras a comida
E trazes a vida nos sapatos altos.

Chega a tua hora
Quase sem dares por isso.
Sais derreada para o baile da palhaçada.
Perdes um sapato
E deixas a esperança perdida junto de um contentor.
Talvez o amor o encontre, porque tu
bela, Cinderela
que cheiras a vida podre
e andas descalça pela rua
nua
Querias ser só sol e mar,
Mas és vida. Nunca adormecida.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Olho-me

Olho-me no meu espelho espelhada
E apenas vejo o meu reflexo difuso
Mas sinto que também sou olhada
O que torna tudo ainda mais confuso.

Olho intensamente mas não vejo nada
A não ser esta personagem que uso
Mas sinto a minha alma ser abusada
Por este olhar estranho que eu recuso.

E invadem-me o pensamento
Sem que eu desse autorização
Por instantes, por um momento

Sei que sou motivo de observação
Mas continuo neste meu tormento
De ninguém me ver realmente o coração.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Instantes II


Numa floresta encantada,
dentro da Lua gelada,
havia um Peixe azul
que rumou a sul
pelo rio amarelo
em cima dum cogumelo.
Deslizou num dia cinzento
à procura de alimento.
Encontrou um morango preto
que dormia num panfleto!
O peixe ficou branco
e deu um solavanco.
Sentiu-se vermelho
e olhou-se no espelho.
Afinal era violeta
e não era Peixe, mas Borboleta
num sonho colorido,
azul incompreendido.

Abriu as asas e rumou a norte

a pensar na sua sorte,

Se calhar não era um sonho

era só um dia medonho

daqueles tão absorventes

que ficamos transparentes,

de tanto cismar com cores

dentro de congeladores

desligados da ficha,

Apaixonados por uma lagartixa

Perita na arte dos enganos

Devoradora de vegetarianos

Que não podem

Nem saem de cima,

E agora perdeu-se uma rima!

Azar, isto não é uma obra-prima

É bem mais do que isso

É um enguiço

De um Peixe que voou do mar

e uma Borboleta que aterrou num Bar.


quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Suspiros de nada

Não me canso da imensidão da água. Cansam-me as palavras que não me dizem nada e desgastam-me os dias em que não posso escrever. Definho entre as folhas em branco. O meu sorriso está num gato azul.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

O Cenário

O conteúdo do cálice adquiriu o tom da toalha. Ela pegou nele e dirigiu-se para a beira da lareira. Retirámos os mantos e formámos um círculo à volta do cálice, sentadas no chão. Os nossos olhos viam agora um espelho de sangue onde era possível distinguir formas. Formas de homens e mulheres. Formas que se moviam com sensualidade e paixão. O que estava a acontecer na ‘Ilha dos Amores’ naquele instante era visto por nós atentamente. E lá estavam, misturadas com as ninfas, algumas vampiras de olhos vermelhos, que só os nossos olhos conseguiam reconhecer. Um cenário idílico repleto de leitos de nenúfares, essências de rosas e velas acesas espalhadas por toda a ilha.

Suspiravam elas e eles e suspirávamos nós por não termos conseguido os nossos intentos.

“Perdemos a única hipótese de nos tornarmos mais fortes do que esses vampiros que nos sugam a vida e que sugam a bondade dos Humanos. Agora resta-nos voltar ao nosso tempo, a tempo!” Foram as palavras da feiticeira dos olhos cinzentos que se fechou depois dentro do seu próprio silêncio.

(...)

Excerto do conto 'A Ilha Vermelha'

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O Espírito de Suas Excelências

Fotografia de Camilo Castelo Branco retirada do blogue Embaixada de Portugal no Brasil

Um destes dias veio parar-me às mãos uma revista, cujo odor me causa uma certa alergia sempre que a abro, no entanto o seu conteúdo é demasiado precioso e a questão do pó que lá se entranhou desde 1952 torna-se ultrapassável. Trata-se da edição de Dezembro de ‘O Mundo Ilustrado’.
São vários os textos que poderia ter escolhido para trazer até este espaço, destaco este em particular para entrarmos no Outono com o Espírito dos Homens notáveis que «têm, com efeito, o poder de comunicar às menores coisas um interesse especial», de acordo com Luís de Oliveira Guimarães:


Havia no Porto, aí por 1850, uma Brasileira que zombava de Camilo. O romancista soube do caso e mandou-lhe uns versos picantes. A rapariga leu os versos; corou até à raiz dos cabelos; chamou um irmão que tinha, um pouco mais velho do que ela, e disse-lhe que procurasse Camilo e lhe pedisse explicações. O rapaz assim fez. Procurou Camilo, num dos cafés que o escritor costumava frequentar e, após uma rápida troca de palavras, ia a despedir-lhe um soco, quando Camilo, travando-lhe o braço, lhe disse com o seu melhor sorriso:

– Seja prudente. O senhor é fraquíssimo, etéreo, quase gasoso. Se eu lhe desse um ligeiro bofetão, o senhor ia parar à Foz. Por consequência sente-se aí. O que quer tomar?
E, obrigando o rapaz a sentar-se à mesa, embebedou-o. Depois pegou-lhe ao colo e levou-o a casa. A irmã do rapaz estava à janela. Camilo ao vê-la, pôs o rapaz no chão e, tirando rasgadamente o chapéu à rapariga, exclamou:
– Seu mano não se pode ter nas pernas porque se encontra como um cacho. Mas ainda tem forças para, em meu nome, dar a Vossa Senhoria, o beijo da Paz!
Enfiou o chapéu, virou costas e retirou-se.


Luís de Oliveira Guimarães
In
Revista O Mundo Ilustrado, Dezembro de 1952

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Sobre a Perfeição


São Paulo, 13 de Setembro de 2009

As minhas mãos tremem enquanto escrevo. Construir uma frase demora uma eternidade e a caligrafia… quase não a reconheço. Já escrevi tantas cartas e recebi outras tantas. Envelopes carregados de folhas que atravessaram o Oceano Atlântico. Alguns extraviaram-se e nunca chegaram ao destino. Provavelmente alguém suspeitou que continham dinheiro.

Esta carta não vai atravessar os ares nem os mares. Escrevo-a apenas para mim. Vejo-me quase obrigada a traçar estas linhas tortas, porque estou tão velha e tão lúcida e a lucidez deve ser uma entidade muito forte, já que é superior às minhas forças. De Portugal vão chegando notícias de que a minha irmã está senil e parece uma criança. Eu não. Terei de sofrer até ao fim o castigo de perceber tudo o que se passa à minha volta.

Há muitos anos vim para o Brasil à procura do meu irmão. A minha irmã ficou em Portugal. Sempre em casa. Raramente saía do perímetro do seu quintal. Casou e ficou sempre lá. Eu parti e fiquei por cá. Encontrei o meu irmão que já tinha constituído uma nova família. Recebeu-me por cortesia. Não esquecera as amarguras por que passara quando a nossa mãe o deixou partir com um casal estranho que prometeu que lhe daria uma vida melhor. Éramos muito pobres nessa altura. O nosso pai tinha morrido e a nossa mãe chorou toda a vida o desgosto por ter deixado o filho partir, mas o seu coração dizia-lhe que seria o melhor para ele. O coração de mãe também se engana.

Fiquei por cá, não por ele, mas porque me habituei a este clima, a este povo. Quem me ouve falar, toma-me por brasileira, mas quem lê o que escrevo, percebe que nunca deixei de ser portuguesa.

Moro sozinha. Já fui muito bonita, tive os meus pretendentes, mas nunca me quis casar. Trabalhei muito durante todos estes anos. Fiz amigos, mas moro sozinha. Não tenho quem me dê a mão. Nunca soube aceitar as imperfeições dos outros e agora muito menos. Mais cedo ou mais tarde escorraço quem comete um erro, um gesto de ingratidão.

A perfeição é um caminho único e o meu leva à solidão.